É brincadeira ou atividade? O brincar livre e a educação infantil

por Gabriel Limaverde

09/11/2018

 

Essa frase eu escutei numa EMEI em São Paulo, mas acredito que seja um mantra dos pequenos, em muitas escolas. Enquanto o fenômeno do brincar livre invade as discussões e pensamentos nas escolas de educação infantil, muitos educadores/as se perguntam se esse é mesmo o caminho, se estariam preparadas para trilhar uma prática docente mais “solta”, se a escola tem um espaço adequado, se os brinquedos e recursos servem e por aí vai.

 

Acredite, educador/a: a resposta a esses questionamentos é sim, com certeza! Nesse artigo, vamos falar sobre o brincar livre e conhecer algumas referências e idéias para trazer este brincar espontâneo e verdadeiro para dentro das nossas escolas.

 

 

 

 

Estamos acostumados a pensar no brincar livre como o oposto da escola – de um lado o espontâneo e descompromissado, e de outro as atividades, horários e regras. Mas à nossa volta brotam argumentos que nos convidam a pensar na relação entre estes dois conceitos de uma nova maneira. Das neurociências por exemplo, aprendemos nos últimos anos sobre a importância de viver uma primeira infância plana para o desenvolvimento saudável do cérebro. Este artigo do Radar da Primeira Infância, dentre muitos outros, esclarece sobre a frenética atividade cerebral que ocorre nos pequenos, principalmente dos últimos meses do útero até os três anos, e da importância do brincar livre nesse processo.

 

Um outro exemplo está na própria etimologia das palavras brincar e escola. Escola se origina do latim schole, que é também a raíz da palavra (pasmem!) lazer. E brincar vem de brincos, do latim vinculum, remete a vínculo, estabelecer relações, interações.

 

Pensando bem, o brincar livre e a escola não precisam estar assim tão distantes nas nossas concepções. A Base Nacional Curricular Comum – BNCC, reconhece este diálogo possível entre escola e brincar livre ao eleger o brincar e as interações como eixos estruturantes para prática pedagógica na etapa da Educação Infantil. “A interação durante o brincar caracteriza o cotidiano da infância, trazendo consigo muitas aprendizagens e potenciais para o desenvolvimento integral das crianças.” (BNCC, 2018 Sessão 3)

 

O brincar aparece ainda como um dos seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento nesta etapa da BNCC. Em seu artigo O brincar na Educação Infantil alinhado à Base Nacional Comum Curricular, a coordenadora da Elos Edneia Burguer argumenta que o brincar engloba todos esses outros direitos. A isso, eu acrescentaria que o brincar livre engloba e garante ainda mais esses direitos.

 

Mas, brincar é diferente de brincar livre? Para a pesquisadora e fundadora do Território do Brincar, Renata Meirelles, “Qualquer brincar que não seja espontâneo deixa de ser brincadeira para se tornar atividade. O aprendizado que traz o conhecimento como um fim é exatamente o oposto do que as crianças fazem no brincar espontâneo. O brincar livre é onde a criança vai explorar, ver o mundo, criar conexões e inclusive aprender a se frustrar.” (Renata Meirelles, entrevistada pelo Lunetas) Para ela, o brincar pedagógico, para desenvolver isso ou aquilo, não é realmente brincar. Os neurocientistas concordam: segunda eles, é o brincar livre, espontâneo, aquele que mais estimula a formação de cadeias neurais.

 

 

E como trazer o brincar livre para dentro das escolas? Existem diversas referências, no Brasil e em vários outros países, de escolas que conseguiram melhor equilibrar o tempo de brincadeiras livres e de atividades conduzidas por adultos.

 

Nesta escola no Japão, por exemplo, as crianças têm total liberdade de escolher em que atividades irão participar (ou não): https://www.ted.com/talks/takaharu_tezuka_the_best_kindergarten_you_ve_ever_seen

 

Na Itália, o município de Reggio Emilia, é conhecido por adotar uma prática pedagógica baseada na expressão das crianças, considerando que a criança tem “cem linguagens”, e que todas devem estar presentes na escola. Saiba mais nesse artigo do Centro de Referências em Educação Integral.

 

Já esse depoimento desta diretora da EMEI Leopoldina, em São Paulo, explica como a escola propõe o equilíbrio brincar-atividades: https://www.youtube.com/watch?v=GT7gdlgSDfA

 

Cada escola, cada educador/a encontra seu caminho para trazer o brincar livre à sua prática. Mas duas habilidades parecem fundamentais, observar e preparar:

 

O brincar livre das crianças, em sala, no parque ou até em passeios organizados pela escola, pode dar muitas pistas sobre os interesses das crianças. Numa escola de São Paulo, por exemplo, as educador/as reparam o alvoroço de um grupo de crianças em torno de uma teia de aranha que acharam na escola. No dia seguinte, as educador/as levaram à sala todo tipo de linha e fios, com os quais os alunos se familiarizaram e brincaram, formando uma espécie de instalação. Na roda de conversa que se seguiu, algumas elas quiseram dar a instalação à aranha, enquanto outras se preocuparam em levar água e comida. A mãe de uma criança, ouvindo em casa sobre a história da teia, disponibilizou-se na semana seguinte a ensinar tricô de dedo e fez com elas lindas pulseiras.

 

No exemplo acima, é claro o equilíbrio entre as momentos de brincar livre (alvoroço na teia, brincadeira com fios e linhas) e de atividades mais estruturadas (roda de conversa, oficina de tricô de dedo). Todo o encadeamento desta semana e meia de aulas partiu de um interesse genuíno apresentado pelas crianças, e capturado pelo olhar atento das educadoras.

 

O observar também promove um outro papel fundamental do educador/a, que é o do registro. Segundo a BNCC, a educador/a precisa realizar “a observação da trajetória de cada criança e de todo o grupo – suas conquistas, avanços, possibilidades e aprendizagens. Por meio de diversos registros, feitos em diferentes momentos tanto pelos professores quanto pelas crianças (como relatórios, portfólios, fotografias, desenhos e textos), é possível evidenciar a progressão ocorrida durante o período observado, sem intenção de seleção, promoção ou classificação de crianças em “aptas” e “não aptas”, “prontas” ou “não prontas”, “maduras” ou “imaturas”.” (BNCC, sessão 3) Somente com o exercício da observação das crianças é possível fazer este registro de forma coerente.

 

Uma das principais maneiras de influenciar o brincar livre das crianças sem necessariamente interferir em sua espontaneidade, é preparar antecipadamente os espaços. No exemplo acima, as educadoras simplesmente trouxeram fios e linhas e disponibilizaram às crianças. Não foi necessário chamá-las a interagir com estes materiais, elas espontaneamente começaram a brincar com eles. É sempre possível trazer novos materiais ou elementos à sala, ou levar as crianças a um local diferente da escola, ou até dar uma volta no quarteirão – e deixar que elas interajam livremente com estes novos elementos.

 

A preparação do tempo também é importante. É fundamental que as crianças tenham tempo livre para brincar, e que este tempo seja flexível de acordo com a brincadeira na qual as crianças estejam empenhadas. É entrando com as crianças nesse brincar que a educador/a consegue “pescar” interesses e curiosidades das crianças que dialogam com os objetivos de ensino e aprendizagem planejados pelo educador/a.

 

Na preparação do tempo e do espaço, vale prever que os tempos e interesses das crianças são diferentes. Assim, esperar que todos estejam engajados nas mesmas atividades ao mesmo tempo pode não dar a melhor condição de aprendizagem a alguns alunos. No exemplo apresentado, ao mesmo tempo em que o grande parte do grupo se engajou nas mesmas atividades, era possível observar algumas crianças com interesses distintos, que eram sempre bem vindos pela professora também.

 

Transformar a educação infantil num momento interessante, verdadeiro e profundo para os pequenos é uma grande tarefa, da qual o brincar livre é um grande aliado. Quanto mais nos interessamos pelo brincar espontâneo das crianças, mais desvelamos maneiras contribuir de forma significativa para sua vida. Vamos brincar?

 

Referências

 

BRASIL (2017). Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular – BNCC Versão Final. Brasília.

Nova Escola (2018). Renata Meirelles: “Brincar não é só alegria”, entrevista. Acessado em 5/Nov/2018 pelo link: https://novaescola.org.br/conteudo/12452/renata-meirelles-brincar-nao-e-so-alegria

RADAR DA PRIMEIRA INFÂNCIA (2016). Neurociência: desvendando o cérebro dos bebês. Acessado em 5/Nov/2018 pelo link: http://radardaprimeirainfancia.org.br/por-onde-comecar/neurociencia/

BURGER, Ednéia (2018). O brincar na Educação Infantil alinhado à Base Nacional Comum Curricular. Blog Elos 27/Jul/2018. Acessado em 05/Nov/2018 pelo link:  http://www.eloseducacional.com/educacao/o-brincar-na-educacao-infantil-alinhado-a-base-nacional-comum-curricular/

TERRITÓRIO DO BRINCAR (2012). Acessado em 05/Nov/2018 pelo link:  http://territoriodobrincar.com.br

Crédito da Imagem:

Fancesco Tonucci, 2001. Adaptado para o português.

 

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Comentários sobre o texto

  1. Karen Kaufmann Sacchetto disse:

    Sensacional, Gabriel!

    Excelente artigo!

    Beijão,

    Karen

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