por Silmara Conchão
06/03/2023
Sempre quando me convidam para escrever sobre o tema do nosso título, sinto-me desafiada em compartilhar meus estudos e o que consegui construí até agora de visão de mundo. E assim, tento fazer com que reflitam sobre as coisas que nesse momento me tocam fortemente.
Algumas pessoas me dizem: “você vê machismo em tudo”. Ou “você pensa assim, mas o mundo não”. Ou, “vá com calma, o que você traz é muito avançado ainda para os dias de hoje”. Por outro lado, outras dizem: “Ahh…o feminismo caiu de moda é coisa do passado, hoje as mulheres mandam mais que os homens”.
É, pois é, o problema é que o tempo passa rápido e a vida escorre pelos dedos e as mulheres continuam sendo assassinadas por “seus” homens todos os dias no Brasil e no mundo. A diversidade humana é uma característica natural, é da vida, e a gente continua vendo que a garantia dos direitos vale só para alguns, para outros não. Vidas que valem mais que outras vidas. Simplesmente por não responderem ao padrão social heteronormativo imposto como algo correto, natural e imutável.
Penso que a “lei social” é mais forte que a que conquistamos na nossa Constituição. A social, vem com tudo ditando normas de comportamento, regras, modo de pensar, agir, ser, viver, desejar e tratar as pessoas. Isto porque temos, além da Constituição de 1988, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e ambas garantem para cada ser, o direito de ser o que é.
Só no papel, pois na prática, somos produto de uma sociedade patriarcal, que nos faz juízes/as morais de nós mesmos/as, reafirmando o sexismo: é o rosa X azul, nos formando como seres naturalmente opostos e utilizando nossa diferenças biológicas como justificativas das desigualdades sociais.
Ahh mas isso é tão antigo! Sim, isto é forte e naturalizada essa divisão. A percebemos dentro dos movimentos sociais, partidos, igrejas, mídia, transporte público, escola, família, ou seja, em todos os cantos vemos uma divisão arbitrária ditando regras deterministas de que homem tem que ser assim e mulher assado. Por quê? Em nome da moral e dos bons costumes patriarcais.
“(…) A mulher moderna sabe que, apesar da evolução das ciências e das artes, o homem continua o mesmo, e o principal atrativo que encontra na mulher é a sua aparência física. (…) Um rosto bonito, uma figura elegante sempre exerce grande poder sobre eles. A mulher que ama a um deles e tem de fazer de tudo para prendê-lo. (…) Eu sei minha amiga! É cansativo isso, e um pouco tolo, mas o que há de fazer?”
O texto é da escritora Clarice Lispector de 1952, que compõe o livro Correio Feminino (2006), baseado no periódico de nome “Comício”. Escritora consagrada na imprensa carioca, Clarice se viu diante da oportunidade de praticar um trabalho singular: o de escrever numa página feminina de título “Entre Mulheres”.
Ela precisava conquistar o seu público feminino e em muitas vezes se colocava num tom de confidente, conselheira, ou valendo-se de textos inofensivos relacionados ao comer, vestir, enfeitar-se, e assim, instigava as suas leitoras a refletir sobre a estrutura social e o ser mulher.
Assinava como Tereza Quadros com receio que tais textos não seriam compreendidos e aceitos pelo público que liam os seus livros. Se Tereza Quadros não fosse Clarice Lispector, talvez a página feminina de Comício fosse comum a todas as outras, e assim, nada, ou quase nada tivesse a nos acrescentar nem no passado nem hoje. Páginas que nunca deixou de pautar o seu estilo pelo gosto do interdito, das entrelinhas que nos remete a ressignificações do que é ser mulher e homem na sociedade.
Lendo a frase acima da escritora convido você a considerar o antes e o agora, e levanto algumas questões: A mulher hoje ainda pensa que o principal atrativo do homem é a sua aparência física? Só um rosto bonito e elegância exercerá poder sobre eles? Que poder é este que as mulheres buscam? Que poder é esse que os homens não abrem mão? Tudo isso é muito tolo? Os homens continuam os mesmos? E as mulheres? Há que se fazer alguma coisa ou não para a autonomia de ambos? De que maneira esse jeito de pensar e escrever de Lispector nos ajuda a compreender a sociedade hoje?
Penso que hoje apesar de muitas pessoas ainda acreditar que o principal ofício da mulher é fazer de tudo pra prender seu homem, muita coisa mudou. Muitas estão trocando o seu príncipe pelo lobo mau. E vou além, questiono se as mulheres ainda querem ser a princesa, até por uma questão Darwiniana de sobrevivência, pois, quando se veem diante de tantos papeis e responsabilidades rompem completamente com o imaginário de que mulher é sexo frágil. E é essa a nossa realidade cotidiana, uma verdadeira luta.
Um dia desses li uma frase na camiseta de uma adolescente e achei bem interessante: “as meninas boas vão para o céu, as más vão para onde querem”. Inesquecível! Uma camiseta com a cara daquela garota e a cara das mulheres hoje. Mas tem um preço alto aí, ao mesmo tempo em que as mulheres avançam na sua libertação as garras do conservadorismo patriarcal maltrata milhares delas, simplesmente porque são mulheres e decidiram fazer escolhas e não abaixar a cabeça, lutar por seus projetos de vida e conseguiram e aprenderam a dizer “não”. Ainda uma grande dificuldade no campo feminino.
Mas estamos em processo de mudança e isso começou lá atrás com Clarisse Lispector e com tantas outras mulheres de todo o mundo, ricas, pobres, brancas, negras, do campo, das florestas, indígenas, lésbicas, bis e etc., que corajosamente, da boazinha virou a malvada. A bruxa malvada!
Como disse Raquel Sanchez Silva, uma jovem jornalista e apresentadora de TV na Espanha: “quem hoje ainda quer ser uma chata aos cuidados de sete anões mineiros e cantores quando pode ser uma gótica fashion como sua madrasta?”
Clarisse Lispector lá em 1952 não escolheu ser a Branca de Neve e nem ser outra princesa. Até porque isso se trata mais de uma questão de consciência, conhecimento e percepção de mundo do que de tempo ou época, ela era revolucionária. Estava fazendo revolução quando decidia sobre a sua vida. Dificuldade que muitas ainda não venceram em pleno século XXI.
Fica a reflexão e talvez aumenta as chances de nos tornarmos melhores, mais fortes juntas e juntos e mais gente. Gente, mais gente e humanos mais humanos. Nem mais e nem menos para ninguém, só mais igual.
Temos afirmado sempre e cada vez mais em todos os cantos da vida os direitos da mulher: “se cuida, seja dona de si, da sua vida, da sua história, do seu corpo; aprenda a dizer “não”, vá à luta e estude, precisamos estudar sempre porque a vida não é fácil. Mas é maravilhosa e você pode”. Aprendemos tudo diferente disto e temos que desconstruir estas ideias. Este ideal de gênero feminino construído socialmente que nos valoriza ainda muito só na condição de mãe e de objeto sexual e do desejo dos outros.
Em nome da moral e dos bons costumes, ou você é santa ou é puta. E se não for nem uma das duas, você é a vadia. Por isto, a criação do movimento #somostodasvadias que surgiu no Canadá em 2011 formado por jovens universitárias. Ser livre é ser vadia, então somos ou buscaremos a cada dia essa tal liberdade.
Em nome da moral e dos bons costumes não falamos sobre isto. Em nome da moral e dos bons costumes não falamos de prostituição, mas existe, e por ser moralmente ilegal em nosso país, corre solto o mercado da exploração sexual. Em nome da moral e dos bons costumes não falamos de sexo porque é pecado, tabu, mas todo mundo pratica, ainda bem. Em nome da moral e dos bons costumes não falamos de aborto, mas as mulheres recorrem nas melhores ou piores condições dependendo da sua classe econômica. Não falamos de maconha, mas é utilizada medicinalmente e no lazer por todas as camadas sociais. Em nome da moral e dos bons costumes deixamos tudo quieto.
Em nome da moral e dos bons costumes a bancada de Deputados e Senadores eleitas no planalto é uma das mais conservadoras da história e suas práticas e afirmações continuam a acirrar o ódio, a segregação, a violência e violação dos direitos humanos. Qualquer outra coisa que não seja a garantia dos direitos humanos para mim é omissão, dogma, negligência, abandono e crime.
Seguiremos desconstruindo o preconceito de gênero e sua função estruturante na sociedade. Entendemos que tudo que é cultura podemos reconstruir e mudar. Esse preconceito que maltrata, dói no peito e mata muitas mulheres e meninas.
E você, mulher, esperará mais um século para receber o beijo do príncipe encantado ou vai envenenar essa princesa chata, careta e submissa que ainda pode estar dentro de você?
Sem esquecer que agora, após a última eleição e as posses das novas e dos novos representantes políticos, é necessário renovar nossas forças, nossa esperança e exigir mudanças reais. Aproveitando que estamos num momento de retomada das políticas para as mulheres que foram abandonadas nos últimos anos. Precisamos seguir vigilantes para que esta retomada seja feita de forma efetiva, comprometida e de efeito duradouro.
E pra finalizar, por ocasião do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, há uns anos atrás, a ONU soltou o convite para dizer ao mundo que você, que está lendo, também tem a ver com isso: “juntos nós podemos mudar a nossa rua, a nossa comunidade, a nossa cidade, o nosso país”. E propõe ações que diz respeito ao papel de cada pessoa para que a mudança ocorra, são elas:
Visitar a câmara municipal, entrevistar as vereadoras e vereadores e conhecer suas propostas para ajudar as mulheres de sua cidade.
Divulgar que existem, nas grandes cidades, centros de atendimento para mulheres, onde elas podem denunciar a violência e ter um acompanhamento psicossocial e jurídico.
Identificar e divulgar novas oportunidades de trabalho para mulheres.
Incentivar ações que estimulem as mulheres a buscar alternativas de geração de renda.
Educar filhos e filhas para que eles realizem, com igualdade, o trabalho do dia a dia em casa.
Não reproduzir expressões como “isso é coisa de mulher”, que sejam contra a dignidade da mulher ou que a coloquem em situação de inferioridade.
Denunciar casos de violência, abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes pelo telefone gratuito 100. Nos casos de agressão física e de violência sexual contra mulheres, ligar para o telefone gratuito do Disque Denúncia 180, que inclusive foi reestruturado recentemente.
Não empregar crianças, para não prejudicar seu desenvolvimento ou comprometer sua infância, e denunciar os casos conhecidos de trabalho infantil no Disque 100.
Não valorizar e não comprar produtos que explorem o corpo da mulher em sua comercialização, exigindo o cumprimento da regulamentação publicitária e fortalecendo o senso crítico da sociedade.
Atuar em atividades em prol da melhoria da autoestima das mulheres, promovendo a valorização e o respeito em todas as fases do seu ciclo de vida (infância, adolescência, gravidez, maternidade, velhice).
Encorajar as jovens para que busquem seu desenvolvimento socioeconômico, por meio da educação e do trabalho.
Incentivar adolescentes mães a retomarem seu projeto de vida, combatendo qualquer situação que dificulte seu acesso às escolas públicas.
Portanto, a utopia de um mundo com igualdade entre os sexos e que valoriza a mulher não é só meu, da ONU, faça parte você também.
Compartilho o poema de Eduardo Galeano Janelas sobre a Utopia: “Ela está no horizonte. Caminho dois passos e ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e ela se encontra dez passos adiante. Para que serve então a utopia? Serve para isso… Para caminhar”.
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