Consciência Negra

Da Lei Áurea ao Racismo Estrutural em 2021

por Mateus Buzzo

19/11/2021

Quando a Lei Áurea foi assinada em 1888, ficou proibida a escravização em território brasileiro. Finalmente os/as escravos/as negros/as estavam livres. O que Rodrigo Augusto da Silva, o autor da lei, e as duas casas da então Câmara Geral do Império não se lembraram, é que essas pessoas ficariam à mercê da população do antigo Império do Brasil e sem qualquer respaldo no quesito habitação, emprego e inserção na sociedade majoritariamente branca. Entretanto, estudos recentes provam que a Princesa Isabel, a regente que sancionou a lei e herdeira presuntiva do trono brasileiro, fez planos para que o governo imperial oferecesse auxílio econômico, habitacional e auxiliasse na inserção social dos/as libertos/as, isso em 1889, um ano depois da abolição. Contudo, o império de Dom Pedro II não resistiu ao golpe militar que proclamou a Primeira República Brasileira e o poder foi para as mãos da maioria escravagista que não permitiu que esses planos se concretizassem.

E foi a partir daí que os/as libertos/as perceberam que a tão sonhada liberdade acabaria sendo mais martirizante do que imaginavam. Os/as afro-brasileiros/as àquela época foram marginalizados/as economicamente e socialmente, tendo sido vítimas da relação mestre/escravo que acabaria virando a relação branco/negro. Sem auxílio educacional e habitacional, muitos/as acabavam em relações empregatícias abusivas com pouco retorno financeiro. Como consequência, os/as negros/as tinham que viver em lugares afastados dos grandes centros ou viver como mendigos/as jogados às ruas da nova República. Como se não bastasse, uma grande reforma urbana nas grandes cidades no começo dos anos 1900, especialmente na capital da Primeira República, Rio de Janeiro, expulsou os/as negros/as para os morros e os/as acumulou num espaço que não conseguia abrigar a todos/as. E assim, surgiam as favelas brasileiras.

 

Obviamente o racismo no Brasil não começou no pós-abolição. É uma cultura enraizada, já que nosso país foi colonizado e os/as africanos/as foram trazidos/as para serem escravizados/as. Entretanto, as marcas de desleixo deixadas pela queda do Império do Brasil, que foi o último país Ocidental a libertar seus/suas escravos/as, e a ausência da justiça social na República Velha, que nada fez para inserir os/as negros/as à sociedade, praticamente foram uma forma de apoio ao racismo.

 

E até hoje, 133 anos após a Abolição, nossa sociedade enfrenta o que é chamado de racismo estrutural. Para que se entenda o que é racismo estrutural, usarei como exemplo um caso que aconteceu em 2015 na cidade de São Paulo. Um turista americano branco estava com seu filho de 8 anos, negro, na rua Oscar Freire, que é conhecida como uma via cujas lojas das grifes internacionais mais caras estão localizadas, quando se afastou de seu filho para atender ao telefone. Eis que a funcionária de uma das lojas falou ao pai que aquela criança não poderia “vender coisas aqui”. Isto é, ao ver uma criança negra, mesmo que bem vestida, numa rua como aquela, a vendedora branca assumiu que se tratasse de um ambulante ou morador de rua.

 

racismo estrutural

 

É comum no Brasil, inclusive para os/as próprios/as negros/as, negar que o racismo seja de fato estrutural. Isso muda quando vivenciamos o racismo. Por anos trabalhei numa grande escola privada de São Paulo em que era clara a distinção entre negros/as e brancos/as. Dentre todo o corpo docente de determinado nível de ensino desta escola, composto por cerca de 16 pessoas, eu era o único negro. Um entre 16! Uma única pessoa negra com ensino superior completo e domínio em idiomas estrangeiros entre 16 pessoas com o mesmo conhecimento. O resto da equipe negra não fazia parte do corpo docente, mas sim dos/as funcionários/as da zeladoria e, principalmente, da limpeza. Às vezes me sentia parte de uma cota imaginária de funcionários/as negros/as que deveriam compor o corpo docente daquela escola. Além disto, numa determinada vez, eu já estava em sala de aula de avental, lousa escrita, caneta na mão e falando com os/as alunos/as, quando uma mãe se sentiu no direito de me interromper e dizer que ela derrubou um líquido no chão e eu precisaria limpar aquele lugar. Eu respondi que era professor e ela indignada indagou “você é professor?” Entretanto, diferentemente da reação da maioria das pessoas, eu perguntei “com um avental no corpo e falando inglês com as crianças, o que mais eu poderia ser?”

 

Pessoas próximas a nós também podem sofrer preconceito que talvez as pessoas brancas nunca entenderão. Minha mãe, que também é professora, passou por um caso parecido com o meu. Mesmo com avental, giz, apagador e livros na mão, no corredor da escola em que trabalha ela foi comunicada por uma mãe que determinado local precisava de seus serviços de limpeza. Isso prova que o racismo está presente em qualquer classe social, pois minha mãe, diferente de mim, é funcionária do Governo do Estado de São Paulo. Além disso, antigamente ela trabalhava em um hospital privado renomado em São Paulo como enfermeira e sempre contou que havia cerca de cinco negros/as nesse setor. Cinco… entre 50 colaboradores/as!

 

Alguns/algumas amigos/as já relataram que foram perseguidos/as em lojas por conta de sua cor e outros/as já foram “convidados/as a se retirar por estarem perturbando a paz do local” sendo que só estavam no caixa para pagar sua compra.

 

O racismo estrutural está presente em todos estes casos, pois estudos recentes apontam que a cor da pele determina escolaridade e empregabilidade, ou seja, a população negra geralmente ocupa cargos mais baixos quando, e se, terminam de estudar. Mas quando a maioria da população vê um/a negro/a em cargos mais altos, ou este/a negro/a é desmerecido/a ou desacreditado/a, tendo que algumas vezes provar seu cargo e inteligência para que possa ser levado/a a sério.

 

Outro problema grave sofrido pelos/as brasileiros/as negros/as é a violência policial. Não é incomum os policiais abordarem negros/as e deixarem os/as brancos/as, como já aconteceu comigo no centro de São Paulo. A justificativa da Polícia sempre é a mesma: “é rotina”, mas sabemos que não é bem assim. Um dos últimos casos mais recentes de violência policial contra negros são o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, que desencadeou uma série de protestos pelo mundo, inclusive contra o então presidente americano Donald Trump, e o assassinato brutal de João Alberto Silveira numa rede de supermercados, um dia antes do Dia da Consciência Negra, em 2020. Ambos os homens foram assassinados por asfixia mecânica devido a imobilização com apoio do peso sobre as costas das vítimas. Tanto nos EUA como no Brasil, os agressores tentaram se defender dizendo que uma discussão havia sido desencadeada pelas vítimas, mas vídeos feitos por testemunhas provaram o contrário em ambos casos.

 

Racismo estrutural

Foto de Natan Dumiao no Unsplash

 

Para que sejamos ouvidos, o Movimento Negro está presente como forma de militância e recentemente entrou como forma política, mesmo que em proporções menores, já que a atual bancada do Congresso Nacional do Brasil, composta por 594 membros/as, conta com apenas 106 negros/as ou pardos/as. Por mais que tenhamos conseguido transformar o racismo em crime, poucas pessoas ainda denunciam, principalmente por acharem que há certa banalização por parte da Justiça composta majoritariamente por pessoas brancas. Além disso, há quem duvide de nossas dores, já que não sofrem o preconceito racial que sofremos. É comum se ouvir falar do “mi-mi-mi”, que “identidade negra é frescura”, “religiões africanas só pregam o mal” ou ainda “nos Estados Unidos o racismo é muito maior do que no Brasil” como tentativa de desmerecer aqueles que lutam contra ou esmaecer o racismo em nosso país.

 

Em seu artigo intitulado “Movimento Negro e Educação: Ressignificando e Politizando a Raça”, a pós-doutora em sociologia e professora da Universidade Federal de Minas Gerais Nilma Gomes diz que “no caso do Brasil, o movimento negro ressignifica e politiza afirmativamente a ideia de raça, entendendo-a como potência de emancipação e não como uma regulação conservadora; explicita como ela opera na construção de identidades étnico-raciais. Ao ressignificar a raça, o movimento negro indaga a própria história do Brasil e da população negra em nosso país, constrói novos enunciados e instrumentos teóricos, ideológicos, políticos e analíticos para explicar como o racismo brasileiro opera não somente na estrutura do Estado, mas também na vida cotidiana das suas próprias vítimas. (…) Ao politizar a raça, esse movimento social desvela a sua construção no contexto das relações de poder, rompendo com visões distorcidas, negativas e naturalizadas sobre os negros, sua história, cultura, práticas e conhecimentos (…).”

 

Com isso, podemos entender que a questão do/a negro/a em sociedade deve ser politizada e jamais ignorada, pois também fazemos parte da sociedade e, de acordo com o IBGE, não somos mais minoria, formando cerca de 54% da população do país.

 

Internacionalmente, temos como políticos/as negros/as de referência o 44º presidente dos Estados Unidos Barack Obama; sua esposa, a ex primeira-dama Michelle Obama; a 49ª vice-presidente dos Estados Unidos Kamala Harris; Malcolm X que foi um importante ativista para a população negra e muçulmana nos Estados Unidos e Nelson Mandela, que antes de servir como 1º presidente da atual República da África do Sul, ficou preso por 27 anos graças às suas tentativas de combate ao apartheid em seu país.

 

No Brasil, podemos citar Antonieta de Barros, filha de escravos/as libertos/as, a terceira mulher e a primeira negra a ser eleita deputada no Brasil; Machado de Assis, que embora não tenha se envolvido diretamente com política, fundou a Academia Brasileira de Letras e nos brindou com clássicos como “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”; e claro, Zumbi dos Palmares, que reinou o Quilombo dos Palmares e é considerado mártir da causa negra no Brasil. Foi decapitado a mando do governador da Capitania de Pernambuco em 1695 e o dia de sua morte, 20 de novembro, tornou-se pela lei federal nº 12.519/2011 a data oficial do Dia Nacional da Consciência Negra para que a história, a cultura e a luta afro-brasileira não fosse esquecida.

Mateus Buzzo

REFERÊNCIAS:

GOMES, Nilma. Movimento Negro e Educação: Ressignificando e Politizando a Raça. CEDES Unicamp, 2012. Disponível em <https://www.scielo.br/j/es/a/wQQ8dbKRR3MNZDJKp5cfZ4M/?lang=pt&format=pdf>. Acesso em: 27 out. 2021.

 

PRUDENTE, Eunice. Dados do IBGE mostram que 54% da população brasileira é negra. Jornal da USP, 2020. Disponível em <https://jornal.usp.br/?p=342504>. Acesso em 28 out. 2021.

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Comentários sobre o texto

  1. Solange Cruz disse:

    Parabéns Matheus!! Adorei conhecer um pouco mais da nossa história e refletir junto sobre o racismo nesse dia tão importante para o Brasil!

  2. Janaina Sousa disse:

    Belíssimo texto, Matheus!

    Precisamos, cada vez mais, entender as bases desse preconceito para que possamos mergulhar na solução do problema e deixar de tratar apenas superficialmente resolvendo um ou outro caso que ganha força com impulso da mídia.
    Conte comigo nessa luta pelo resgate do nosso valo!

  3. Eliana M disse:

    Excelente texto para um bom início de diálogo e reflexão. Parabéns!!!

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