por Robevânia Virgens
14/04/2025
Você já ouviu esse termo? Ou será que você fala o pretuguês sem nunca sequer ter ouvido falar nele?
A construção do português brasileiro teve ricas influências de vários idiomas da África, inclusive do bantu (língua que deu origem a centenas de outras línguas). Segundo González (2018), essa africanização linguística veio para cá com a escravidão e, por isso, o termo “pretuguês” foi criado por ela, Lélia González, uma mulher negra e intelectual, doutora em antropologia política e mestre em comunicação social, graduada em história e filosofia.
Sabemos que a língua foi forte ferramenta de colonização e que as pessoas escravizadas tiveram até que mudar seus nomes ao chegarem aqui no Brasil. E como a língua retrata a nossa origem, elas também tiveram que falar a língua do colonizador, que ratifica e explica a ideologia do branqueamento por traz da imposição linguística, que a sociedade exerce quando diz que a pessoa deve ser corrigida porque é errado falar o pretuguês, gerando um espaço linguístico dominado por um grupo.
Muitas pessoas desconhecem as contribuições africanas que a nossa língua portuguesa recebeu e rotulam as pessoas que trocam o L pelo R, que condensam o ESTÁ em TÁ, o VOCÊ em CÊ, que usam a dupla negação (“não vai ficar não”), que cortam os erres dos infinitivos verbais de “sem conhecimentos”. No entanto, precisamos lembrar que essa fala sofreu africanização, para não agir com preconceito linguístico. Sabemos que temos a língua portuguesa padrão, mas isso não impede o reconhecimento de que nosso idioma tem sua base linguística no banto (base linguística que deu origem a várias outras línguas africanas, totalizando mais de 400 grupos étnicos que falam a língua banto). Assim sendo, a repressão linguística até hoje serve apenas para colocar as pessoas nesse lugar de “erradas”.
Na letra da música de Clementina de Jesus temos várias palavras como exemplo de bantuização. Ou seja, palavras que já escutamos por várias vezes e, em muitas dessas vezes foram julgadas como erradas ao serem pronunciadas por alguma pessoa (mais frequentemente, por pessoas mais velhas). Tudo isso, pelo fato da raiz linguística das palavras que sofreram africanização serem desconhecidas. A letra da música “O canto dos escravos” – canto II de Clementina de Jesus – é composta por várias palavras que são usadas por nossos falantes brasileiros no dia a dia e, muitas vezes, são motivos de risos e deboches, porque não conhecem o pretuguês, termo criado por González, no que se refere à africanização do português do Brasil.
“O canto dos escravos” – canto II
Clementina de Jesus
Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino,
Parente de quiçamba na cacunda.
Purugunta aonde vai, purugunta aonde vai,
Ô parente, pro quilombo do dumbá. (x2)
Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino,
Parente de quiçamba na cacunda.
Purugunta aonde vai, purugunta aonde vai,
Ô parente, pro quilombo do dumbá. (x2)
Ê, chora, chora gongo, ê dévera, chora gongo chora,
Ê, chora, chora gongo, ê cambada, chora gongo chora.
Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino,
Parente de quiçamba na cacunda.
Purugunta aonde vai, purugunta aonde vai,
Ô parente, pro quilombo do dumbá. (x2)
Ê, chora, chora gongo, ê dévera, chora gongo chora,
Ê, chora, chora gongo, ê cambada, chora gongo chora.
Muriquinho é uma palavra do linguajar popular, que quer dizer molequinho ou criança pequena. Nesse canto dos escravos, fala-se sobre a história de um menino pequenino que foge para um quilombo, o Quilombo de Dumbá (espaço de refúgio e de resistência de pessoas escravizadas). Ele foge com um cesto ou trouxa nas costas (quiçamba na cocunda). No refrão da música “Ê, chora, chora gongo…” remete-se a imagem do gongo, um instrumento de percussão africano, além da possibilidade de remeter também à memória dos ancestrais e à resistência cultural. E, ainda, o choro do gongo que representa tanto a tristeza quanto a força e a resiliência do povo africano e seus descendentes no Brasil.
O pretuguês traz em suas definições não somente vários padrões linguísticos, mas, também, estéticos, artísticos e culturais característicos de uma interseccionalidade entre gênero, raça, etnia, religião, nacionalidade, e outras mais.
Assim, temos uma definição para o pretuguês “[…] que nada mais é do que a marca da africanização do português falado no Brasil.” (GONZALEZ, 2018, p. 323). Podemos ressaltar alguns exemplos que você já tenha ouvido alguém falar ou já tenha falado: NAISCI ao invés de NASCI, CRARO ao invés de CLARO, etc. Pois, tudo isso é devido ao nosso português do Brasil ter origem bantu (tronco linguístico com mais de 600 línguas, trazidas a força durante a escravização). Sendo assim, a repressão linguística até hoje serve apenas para colocar as pessoas nesse lugar de “erradas”.
Dessa forma, faz-se necessário que tais conhecimentos sejam repassados aos falantes da língua portuguesa falada no Brasil. Pois, considera-se preconceito linguístico, definir tais falas como erros gramaticais. Ou seja, esse ato, refere-se às marcas das línguas e dialetos afros classificados como erros gramaticais.
Por isso, é primordial mantermos a lembrança de que a língua nos liga com quem nós somos, com as nossas origens, e de onde viemos. Ela é parte viva de nossa resistência e ligação com a nossa ancestralidade. Destarte, quem fala mais fortemente o Pretuguês não deve ser rotulada como uma pessoa que não sabe falar ou que deve ser corrigida. Enfim, respeitar e entender tudo isso significa aceitar a diversidade nos diferentes espaços, sejam eles quais forem.
REFERÊNCIAS:
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. Rio de Janeiro: UCPA, 2018.
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