por Claudia Zuppini Dalcorso
09/09/2024
No atual cenário global, discutir a eficiência dos sistemas educacionais é cada vez mais relevante. Recentemente, em uma conversa com o professor Martin Carnoy, renomado economista e educador da Stanford Graduate School of Education, surgiram reflexões sobre a responsabilidade financeira e educacional nos Estados Unidos, tema abordado em seu mais recente livro.[1]
Carnoy, amplamente reconhecido por suas pesquisas que exploram o impacto das políticas educacionais no desempenho escolar e nas desigualdades sociais, destacou a necessidade urgente de garantir que os recursos destinados à educação sejam usados de maneira eficaz. Nos Estados Unidos, as despesas públicas com educação primária e secundária são massivas, comparáveis ao orçamento de defesa do país, atingindo valores como os $670 bilhões projetados para 2018-19. Esse investimento, majoritariamente gerido por estados e comunidades locais, levanta questões sobre a accountability (prestação de contas) dos sistemas escolares para com os contribuintes e os pais.
Historicamente, o sistema educacional americano incorporou diversos mecanismos de prestação de contas, que vão desde a verificação financeira básica até a implementação de currículos padronizados e a certificação de professores/as. No entanto, um marco importante ocorreu na década de 1980, quando houve uma mudança significativa para a accountability baseada nos resultados dos/as estudantes, principalmente em testes padronizados e nas taxas de conclusão do ensino médio.
Essa transição, impulsionada por relatórios como “A Nation at Risk” (Uma nação em risco)[2] e por influências políticas, refletiu um novo enfoque na medição da qualidade educacional por meio do desempenho estudantil. Estados como Texas e Carolina do Norte se destacaram ao implementar sistemas rigorosos de prestação de contas baseados em resultados, que posteriormente inspiraram reformas em todo o país.
Apesar dos avanços, Carnoy ressalta que os sistemas de prestação de contas não estão isentos de críticas. O foco excessivo nos resultados de testes pode gerar efeitos adversos, como a adoção de práticas educativas que visam mais à obtenção de boas notas em exames do que à formação de estudantes críticos e bem-preparados para desafios futuros. No entanto, em contextos de baixa renda, a prestação de contas pode servir como um catalisador positivo para a mobilização de comunidades em busca de melhorias na qualidade educacional.
A responsabilidade financeira e educacional nos EUA, portanto, é um tema complexo que requer um equilíbrio delicado entre a eficiência no uso de recursos e a garantia de uma educação de qualidade para todos/as os/as estudantes. As reformas educacionais devem, segundo Carnoy, ser acompanhadas por um compromisso contínuo com o aprimoramento da formação de professores/as, a adequação curricular e o suporte às comunidades escolares, especialmente as mais vulneráveis.
O texto e as discussões trazidas por Martin Carnoy oferecem uma rica oportunidade de análise comparativa com a realidade brasileira. Nos Estados Unidos, o conceito de “accountability” evoluiu para incluir a responsabilização das escolas e dos/as professores/as pelos resultados de aprendizagem dos/as estudantes, especialmente após a publicação do relatório “A Nation at Risk”. No Brasil, embora também existam mecanismos de responsabilização, como as avaliações do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e o SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), ainda há desafios significativos na implementação de uma accountability efetiva. As discrepâncias regionais, a falta de uniformidade nos currículos (apesar da BNCC) e as desigualdades socioeconômicas dificultam a implementação de um sistema de responsabilização tão abrangente quanto o norte-americano.
Nos Estados Unidos, a responsabilização financeira é uma questão central, dado o alto investimento público em educação. No Brasil, a discussão sobre o financiamento da educação também é crítica, especialmente em relação ao Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica). Embora o Fundeb represente um avanço significativo, o financiamento desigual entre estados e municípios ainda resulta em disparidades na qualidade da educação oferecida. Além disso, há uma discussão contínua sobre como os recursos são alocados e utilizados e se eles realmente contribuem para a melhoria da aprendizagem dos/as estudantes.
Carnoy destaca as desigualdades educacionais nos Estados Unidos, um problema também profundamente enraizado no Brasil. No contexto brasileiro, essas desigualdades são exacerbadas pelas diferenças regionais e socioeconômicas. As escolas em regiões mais pobres frequentemente têm menos recursos, professores/as menos qualificados e condições de ensino inferiores. Isso cria um ciclo vicioso em que os/as estudantes dessas regiões têm menos chances de sucesso acadêmico, perpetuando as desigualdades sociais.
Nos Estados Unidos, foram implementadas políticas de incentivo e sanções, como no caso do Texas, onde as escolas são avaliadas com base no desempenho dos/as estudantes em testes padronizados e podem enfrentar consequências negativas se não atingirem as metas. No Brasil, a aplicação de políticas de sanções é menos comum, mas há um crescente debate sobre a necessidade de medidas mais rigorosas para garantir que as escolas estejam comprometidas com a melhoria do desempenho dos/as estudantes. Entretanto, isso também levanta preocupações sobre o impacto que essas políticas podem ter em escolas que já enfrentam dificuldades significativas.
A mudança do foco do processo educacional para os resultados, como ocorreu nos EUA com a introdução de accountability baseada em testes, levanta questões sobre a abordagem brasileira. No Brasil, o foco ainda tende a estar em insumos e processos, como a formação de professores/as e o currículo, em vez de resultados mensuráveis. No entanto, a adoção de políticas mais focadas em resultados, como o IDEB, começa a sinalizar uma mudança. Isso levanta a questão de como equilibrar a necessidade de resultados mensuráveis com a preservação da qualidade e integralidade do processo educativo.
Ambos os países enfrentam desafios em relação à implementação de reformas educacionais significativas. No Brasil, as reformas são frequentemente complicadas por questões políticas e pela falta de continuidade nas políticas públicas. Assim como nos EUA, onde o federalismo impõe desafios à implementação de uma política educacional uniforme, no Brasil, as diferenças regionais e as autonomias estaduais criam um ambiente complexo para a implementação de reformas nacionais.
Em última análise, a responsabilidade dos sistemas escolares vai além da simples prestação de contas financeiras. Ela deve englobar uma visão abrangente de como a educação pode ser transformada para atender às necessidades de uma sociedade em constante mudança, sem perder de vista a equidade e a qualidade.
[1] Carnoy, M. (2024). The Political Economy of Education. Cambridge University Press. DOI: 10.1017/9781009364461. https://www.cambridge.org/highereducation/books/the-political-economy-of-education/508E2032DBFF2B61F6A3F65D4074EF78#overview
[2] National Commission on Excellence in Education. A Nation at Risk: The Imperative for Educational Reform. Washington, D.C.: U.S. Department of Education, 1983.
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